A estranha e horrível busca pela Substância X

Nossa compreensão das endorfinas pode ser rastreada até a cabeça de um porco. (Boston Public Library, Leslie Jones Collection)

Sam Kean reconta a busca pelos furtivos analgésicos cerebrais.

Todas as manhãs antes do amanhecer, o neurocientista John Hughes pedalava até o matadouro com uma serra, um machado e uma faca em uma cesta. Ele cumprimentava os homens mal-humorados que cerravam as cabeças dos porcos e iniciava sua súplica diária para que lhe cedessem alguns dos crânios. A princípio, Hughes assegurava a cooperação, exibindo as maravilhas da neurociência e a nobreza de sua pesquisa. Pense em todas as pessoas que poderíamos ajudar a controlar a dor crônica, ele explicou, se soubéssemos como o próprio cérebro acalma a dor usando neurotransmissores. Hughes logo percebeu, no entanto, que com uma boa garrafa de uísque conseguia a cooperação dos trabalhadores muito mais rapidamente, e ele começou a adicionar algumas à sua cesta todas as manhãs.

A descoberta da maioria dos neurotransmissores – substâncias químicas que enviam sinais de um neurônio para outro dentro do cérebro – seguiu um padrão repetitivo. Os cientistas se deparam com uma nova substância química no cérebro enquanto investigavam o comportamento celular. Eles isolavam e testavam a amostra purificada nos neurônios no laboratório. Se isso afetasse o comportamento desses neurônios de maneira clara e consistente, então a substância química provavelmente faria algo semelhante dentro do cérebro vivo. Essa estratégia foi muito bem-sucedida ao longo do século 20 e ajudou os cientistas a identificar a maioria dos cerca de cem neurotransmissores que conhecemos hoje.

Mas houve uma grande exceção a esse padrão: a descoberta dos analgésicos naturais do cérebro – as endorfinas. Quando se tratava de dor, os cientistas começaram estudando como a morfina, o ópio e outras drogas semelhantes funcionavam e só mais tarde começaram a procurar substâncias químicas no cérebro. Em geral, os neurotransmissores transmitem mensagens bloqueando a superfície das células: um neurônio libera a substância química, que nada através de uma pequena junção (a sinapse) e liga-se a receptores em outro neurônio. Durante a década de 1950, os cientistas perceberam que os opiáceos também funcionavam ligando-se aos receptores dos neurônios. E se esses produtos químicos artificiais eram tão adequados à ligação, o cérebro já deveria empregar substâncias químicas naturais com uma estrutura semelhante – ou os receptores não existiriam.

Quais eram essas substâncias químicas, no entanto, ninguém sabia. Então Hughes, um jovem londrino que trabalhava em Aberdeen, na Escócia, decidiu procurá-las. Acabou sendo um dos projetos mais sujos e nauseantes da história da ciência.

Hughes chamou os supostos novos neurotransmissores de Substância X, e por alguma razão ele decidiu que o melhor lugar para procurá-los era dentro do cérebro dos porcos, o que significava uma visita diária ao matadouro com sua serra e garrafa de uísque. Bem subornados, os trabalhadores levavam para Hughes cerca de 20 crânios de porco e, enquanto ele lutava contra ratos, ele cortava cada cérebro do tamanho de uma toranja em cerca de 10 minutos e depois os empacotava em gelo seco. Várias horas depois, ele voltava ao laboratório, esmagava os cérebros até ficar uma pasta cinzenta e os dissolvia em acetona. (Colegas lembram da combinação que cheirava à cola de avião e gordura rançosa.) Finalmente, ele centrifugava a pasta e evaporava as várias camadas para testar se elas eram a Substância X.

Agora vinha a parte estranha. O mentor de Hughes, Hans Kosterlitz, era especialista mundial em duas partes da anatomia extremamente específicas: o íleo de Cavia e o ducto deferente murino, mais conhecido como intestino de porquinho-da-índia e tubo de espermatozoides de camundongo. Quando dissecados do resto do corpo, cada uma dessas partes parecem minúsculas e enroladas, e cada uma tem uma propriedade bizarra. Se você suspendê-la em solução salina e ativar um certo nervo, ela vai se contrair por conta própria, batendo como se estivesse de alguma forma loucamente viva.

Igualmente bizarro, em algum ponto, Kosterlitz determinara que tanto o íleo Cavia quanto o ducto deferente murino eram superlativamente sensíveis a substâncias químicas semelhantes à morfina. Ou seja, uma vez que esses órgãos começassem a se contrair, até mesmo traços de morfina parariam imediatamente os espasmos. Assim, Kosterlitz e Hughes passaram meses ativando os tubos e intestinos de espermatozoides – produzindo evacuações e orgasmos desincorporados em um béquer – e injetando substâncias após substâncias dos cérebros dos porcos para ver se alguma coisa interrompia esses espasmos. Eles finalmente encontraram uma substância – uma cera amarela com cheiro de manteiga estragada – que interferia nas contrações, da mesma forma como a morfina. A Substância X foi encontrada.

A Substância X acabou ficando conhecida como endorfina, uma junção de “morfina endógena” e, exatamente como Hughes esperava, estudá-la forneceu informações importantes sobre como o corpo administra e até bloqueia a dor. Então, da próxima vez que você estiver correndo e de repente sentir o prazer de correr, ou você esmagar o seu polegar com um martelo e notar que ele não dói tanto quanto deveria, você pode agradecer ao John Hughes, e sua pilha de miolos de porco por revelar o porquê.

Texto escrito por Sam Kean.

Traduzido por Prof. Dr. Luís Roberto Brudna Holzle ( [email protected] ) do original ‘The Strange, Gruesome Search for Substance X’ com autorização oficial dos detentores dos direitos.

Original (English) content from Science History Institute (https://www.sciencehistory.org/). Content translated with permission, but portuguese text not reviewed by the original author. Please do not distribute beyond this site without permission. [[Conteúdo original (inglês) do Science History Institute (https://www.sciencehistory.org/) . Conteúdo traduzido com permissão, mas o texto em português não foi revisado pelo autor do original. Por favor, não distribua o conteúdo sem permissão.]]


Escreva um comentário